A Imaginação é a Memória de deus.

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quinta-feira, 15 de maio de 2014

O mito e a emergência do mundo humano (fonte: http://www.ideiaselivros.com.br/index.php/ideias-e-livros/filosofiaconsciencia-mitica.html)

Durante muito tempo na história do pensamento o mito foi visto como uma expressão menor do espírito humano, sendo abordado mais como uma fantasia pueril do que como uma autêntica forma de expressão. Concebia-se a ideia de que o mito era tão somente fruto da imaginação do homem, especulação ingênua daqueles que habitavam tempos primitivos e que ainda não tinham meios de fazer uma distinção entre o “real” e o ”fantasioso”. Aqueles que enxergavam o mito por esse âmbito, concebiam-no como uma forma que “suspeita” o real, mas que, por carecer da luz da razão, não consegue apreendê-lo em toda a sua plenitude. O mito é uma forma não racional de acesso à totalidade das coisas, e esse acesso não se dá de maneira plena pelo fato de ainda não dispor do uso da racionalidade; o que ele consegue revelar é apenas um emaranhado de sombras e equívocos.
Essa abordagem dos relatos míticos como uma forma de expressão menor do espírito humano teve, no pensamento ocidental, o seu início com a emergência da filosofia como nova e revolucionária forma de apreensão do real. No momento do alvorecer do questionamento filosófico, temos a contraposição entre o mythos e o logos. O mito foi entendido pelos primeiros pensadores gregos como uma ficção, como descrição não racional do mundo e do homem; uma descrição que deveria ser abandonada, pois, de acordo com o emergente modo de apreensão, só a razão pode ser seguro caminho para a compreensão do cosmo e do homem. Tal posição parece ter sido assumida pela maioria dos pensadores do período clássico. No Fedro, Platão (427 a.C – 347 a.C), um dos pilares do pensamento ocidental vai assumir uma atitude de menosprezo em relação aos relatos míticos:
Eu caro Fedro, acho tudo isso muito bonito, mas é um trabalho para um homem de grande inteligência, a quem o esforço não intimida, e aí não encontramos felicidade. Além disso, seria necessário interpretar, a seguir, a figura dos Hipocentauros, a da Quimera, e finalmente uma multidão de Górgonas e de Pégasos, um número pasmoso de outras criaturas inexplicáveis e lendárias. Se, por incredulidade, se procura dar verossimilhança a esses seres, usando para isso de uma curiosa e grosseira sabedoria, perde-se nisso o tempo, e não podemos apreciar a vida como convém1.
Como bem se pode perceber, há um forte desprezo em relação ao mito e à sua significação, uma vez que este parece não dispor do elemento racional, tão caro à filosofia platônica. Sobre esse menosprezo em relação à narrativa mítica, não só no âmbito da filosofia de Platão, mas em todo pensamento ocidental, assim se expressa o romeno Mircea Eliade (1907-1986):
Todos sabem que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470 a.C) – que foi o primeiro a criticar e rejeitar as expressões “mitológicas” da divindade utilizadas por Homero e Hesíodo – os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo valor religioso e metafísico. Em contraposição ao logos; assim como posteriormente à história, o mythos acabou por denotar tudo “o que não pode existir realmente”. O judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da “falsidade” ou “ilusão” tudo o que não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos2.
Essa postura em relação ao mito parece diminuir sensivelmente com o desenrolar da história do pensamento ocidental, a ponto de, no século XVII, Giambattista Vico (1668-1744) compreender a narrativa mítica como uma forma de conhecimento que se situa numa perspectiva diferente da perspectiva racional. Se levarmos em conta o pensamento contemporâneo, veremos que o desprezo em relação ao mito parece ter recuado de modo sensível, uma vez que filósofos como Ernst Cassirer (1874-1945) compreenderam o mito como uma importante criação do espírito humano, devendo ser levado em conta em qualquer estudo que se faça sobre o homem e a construção da cultura.
O mito, portanto, pode ser abordado como uma explicação do mundo que difere da explicação racional; uma explicação válida, uma vez que a realidade pode ser explicitada e organizada por vias outras que não aquela dada pelo discurso conceitual. Poderíamos dizer que tanto a explicação mítica quanto a indagação filosófica têm a possibilidade de desvelar os mistérios do mundo, do tempo, espaço e da existência humana. O mito coloca o homem diante do inexplicável do mundo das coisas, da existência cotidiana que quase sempre se lhe mostra hostil, intangível, papel também desempenhado pela indagação filosófica, que desperta o homem para a riqueza, alcance e limitações do mundo fenomenal e de sua própria existência. Mircea Eliade, em Mito e Realidade, assim explicita essa mudança de enfoque em relação às narrativas míticas:
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, isto é, como “fábula”, “invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira” e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo3.
O mito constitui-se num conhecimento verdadeiro no momento em que abordado como tentativa humana de compreender e adaptar-se ao fenomênico. Sob este aspecto, torna-se infundada a tentativa de opor o mito ao conhecimento conceitual/racional, como se aquele fosse “fantasioso” e este fosse expressão da verdade absoluta. Com Merleau-Ponty poderíamos dizer que “a realidade não é uma aparência privilegiada que permaneceria sob as outras, ela é a armação de relações às quais todas as aparências satisfazem”4. O mito é uma construção humana com vistas a apreender a totalidade do mundo. Podemos dizer que os relatos míticos “constituem instrumentos do conhecimento do real de uma qualidade e legalidades próprias”5. Destitui-se, desse modo, o discurso conceitual como o único portador de um significativo conhecimento estruturador da existência humana e busca-se outras formas que possibilitem expressar essa mesma existência.
O mito é o primeiro espanto do homem diante do mundo, é a constatação da multiplicidade que caracteriza o mundo fenomenal. É portanto uma forma de organizar e de dotar esse mundo fenomenal de uma unidade. O mito é uma expressão da angústia humana frente a polivocidade do mundo fenomenal, “é a explicação do mundo (…) como ‘percepção unificadora’ e ‘organização eficaz’”6.
É interessante notar que essa expressão unificadora se elabora a partir de um horizonte vivencial, o que nos permite dizer que o mito é uma estrutura que faz um apelo à afetividade. O conceitual, o abstrato, o refletido, parece, na maioria das vezes, distante do relato mítico. É na descrição do natural, do cotidiano, do encontro com a natureza que opera a narrativa mítica; ela organiza o mundo vivido, experienciado, do homem primitivo através de um apelo à afetividade. Não há um saber abstrato das coisas da natureza, das forças naturais, elas, antes, convivem no cotidiano humano e, muitas vezes, comportam-se como o humano, como o homem. Como Cassirer nos chama a atenção, “o espaço primitivo é um espaço de ação; e a ação está centrada em torno das necessidades e interesses práticos imediatos”7. O mito surge como possibilidade de instauração de um sentido ao mundo fenomenal, um mundo imediatamente vivido, mundo no qual o homem está encerrado e no qual realiza sua existência:
Na medida em que o homem primitivo leva a cabo atividades técnicas no espaço, em que mede distância, dirige sua canoa, arremessa seu dardo contra determinado alvo e, assim por diante, não difere, do nosso, em sua estrutura. Mas quando o homem primitivo faz deste espaço um tema de representação e pensamento reflexivo, surge uma ideia especificamente primordial, que difere radicalmente de qualquer versão intelectualizada. A ideia do espaço, para o homem primitivo, mesmo quando sistematizada, está sincreticamente ligada ao tema. É uma noção muito mais afetiva e concreta que o espaço abstrato do homem de cultura avançada… Não é tão objetiva, mensurável e de caráter abstrato. Revela características egocêntricas ou antropomórficas, e é fisionômico-dinâmica, arraigada no concreto e no substancial8.
O tempo e o espaço, para o homem primitivo, são tempo e espaço vivenciais e não abstratos. Vive-se com o mito, unido a ele na cotidianidade. Em todo aspecto da natureza, em todo seu aparecer e, analogamente, em todo o comportamento humano pulsam a influência mítica, a ira ou a benevolência das divindades. O homem primitivo que conhece tão bem uma paisagem, um vale, ou um rio, conhece-o pelo contato imediato proporcionado pela vivência, por uma comunicação que une, através da perspectiva mítica, homem e natureza. Ele não se perde no rio pelo fato de ele lhe ser tão próximo, tão conhecido; pelo fato de ter sido, em tempos antigos, cativado pelos seus antepassados. O rio é um espaço de relações vivenciais: é o belo, o temeroso, o sereno, o colérico:
O mundo do mito é dramático – de ações, forças e poderes conflitantes. Em todo fenômeno da natureza, nada mais vê que o embate destes poderes. A percepção mítica está sempre impregnada dessas qualidades emocionais: o que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera especial – de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exaltação ou depressão. (…) Todos os objetos são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, familiares ou sobrenaturais, encantadores e fascinantes ou repelentes e ameaçadores9.
Esse aspecto afetivo das narrativas míticas, que a elas confere uma proporcionalidade antropológica, será criticado no alvorecer da filosofia, quando os filósofos pré-socráticos atentar-se-ão à carência do elemento racional das tradições míticas. Para esses pensadores, generosidade e inveja, avareza e amizade não são marcas de divindades, mas são, antes, características puramente humanas. O pré-socrático Xenófanes de Colofão (c. 570 a.-460 a.C) por exemplo, sustentará a tese de que as narrativas míticas do mundo grego são apenas aspectos humanos hipostasiados. Esses pensadores marcam a virada de um exprimir-se pela afeição para uma nova forma, qual seja, a expressão tipicamente racional. Vemos nesses pensadores uma tentativa de abandono das tradições míticas e um “fracasso”, pelo menos parcial, nessa mesma tentativa, uma vez que o modo de exprimir-se desses pensadores ainda assemelha-se ao modo de expressão característico do mito. Pitágoras, por exemplo, apesar de todas as suas conquistas abstratas no campo das matemáticas, vai “divinizar” o número e Tales, numa maneira análoga, vai dizer que tudo está cheio de deuses, querendo com isso expressar a sua ideia de uma unidade da physys:
O mérito dos pré-socráticos consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos. Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elemento de que tudo se constituía. Uns enfatizavam a água, outros o fogo, outros a terra, outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo é a água, não se refere exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria a conditio sine qua non de tudo10.
O emergir de um mundo mítico marca a emergência de um mundo humano. Tal afirmação abre-nos a possibilidade de abordar o mundo mítico como uma tentativa de instauração de um sentido ao mundo natural por parte do homem. O mito aparece-nos, nesse âmbito, como um veículo de diálogo do homem com o mundo, um medium que possibilita a comunicabilidade entre o homem e o mundo fenomenal, o mundo das coisas. Através do mito, como bem nos elucida Cassirer, “o homem descobriu um novo método de adaptar-se ao meio”11. É justamente essa nova forma de adaptação que proporcionará ao homem uma face de penetração no mundo natural; um mundo que sem a mediação mítica apresenta-se ao homem como uma paragem fria, inabitável, destituída de um sentido. O mito tem o poder de transformar o mundo natural, o mundo dos fenômenos, numa hospitaleira morada, inaugurando assim um horizonte de onde o homem lança-se em direção ao mundo. Através do relato mítico, o mundo fenomenal adquire um sentido, uma unidade apreensível pelo homem. Com Cassirer, podemos dizer que “seria inteiramente impossível apreender e reter o mundo exterior, conhecê-lo e entendê-lo, concebê-lo e designá-lo, sem esta metáfora fundamental, (…) sem este ato de insuflar nosso próprio espírito no caos do objeto e de refazê-los, voltar a criá-los”12. O mito possibilita ao homem transcender a si mesmo e ao mundo, a polivocidade e incomunicabilidade desse mundo; “graças ao mito, o mundo pode ser discernido como cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo”13. Como nos elucida Leszek Kolakowski (1927-2009), “o projeto mítico, que exige uma resposta à pergunta acerca da contingência do ser, tem sua raiz (…) na rota elementar do homem rumo à sua própria situação. É a tentativa de enfrentar ou de superar a experiência da própria heterogeneidade frente ao mundo14(grifo nosso).
O relato mítico possui uma qualidade reconstituidora do mundo; é a possibilidade de, sobre o mundo fenomenal, inaugurar um mundo humano dotado de sentido. Como tal, o mito configura-se como esteio do mundo humano, uma vez que a heterogeneidade e incomunicabilidade do mundo fenomenal é superada. Pela mediação mítica, o homem passa a habitar num horizonte constituído de sentido; horizonte este que lhe permitirá se estruturar e lançar-se ao mundo das coisas. Um foco de luz é direcionado ao mundo fenomenal através do relato mítico, e é essa luz doadora de um sentido que permite ao homem transformar o mundo natural em habitat para si. Ao transformar o mundo natural num intrincado conjunto de eventos míticos, o homem primitivo adquire a segurança de um mundo que lhe é acessível; é a partir desse desenrolar de eventos míticos, a partir desse intrincado sistema de significações que o homem pode constituir-se como presença efetiva no mundo. Seguindo a Merleau-Ponty, poderíamos dizer que “o sujeito efetivo precisa primeiramente ter um mundo ou ser no mundo, quer dizer, manter em torno de si um sistema de significações15 (grifo nosso). O mito é uma estrutura possibilitadora de transcendência do homem primitivo em relação a si e ao mundo fenomenal. Através do mito, o homem transcende a sua condição de heterogeneidade frente ao mundo das coisas, concatenando a polivocidade desse mundo num sistema mítico dotado de significação. O mito inaugura um ver-como e um ser-como; é a possibilidade de identificação de si como presença efetiva no mundo. Através do mito, o mundo fenomenal torna-se habitável, uma vez que estabelece um horizonte “articulado o suficiente para que os atos da vida cotidiana (…) sejam possíveis16. (grifo nosso)
O mito é uma estrutura que permite a comunicação entre o mundo natural e o homem, uma comunicação que instaura um mundo cultural. Vale retomar Merleau-Ponty e com ele afirmar que “é comunicando-nos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos”17. Um mundo de proporções antropológicas emerge pela força mítica, mundo que supera a falta de sentido e que permite ao homem viver entre os fenômenos. O mito é a possibilidade de superação do caos disforme que constitui o mundo natural. Com Cassirer, dizemos que “o homem só vive com as coisas na medida em que vive nestas configurações; ele abre a realidade para si mesmo e por sua vez se abre para ela, quando introduz a si próprio e o mundo neste médium dútil”18.
Estamos dizendo que o mito instaura uma comunicação entre o homem e o mundo fenomenal, inaugurando um mundo humano. Poderíamos dizer também que o mito instaura uma direção, um horizonte e uma ordem. Através das narrativas míticas podemos claramente perceber que um cosmos emerge de um caos primordial pela vontade de uma deidade ou pelo esforço de um heroico homem. O cosmo surge a partir dessa vontade e desse ato, o inacessível torna-se ordenado e acessível por essa vontade. Das trevas, um deus, ou um herói, faz emergir uma direção, um sentido; inaugura uma luz que permite o vislumbrar de uma ordem acessível ao homem. Nas palavras de Cassirer, “este sair da surda plenitude da existência para entrar em um mundo de configurações claras e verbalmente acessíveis é representada pelo mito, (…) pelo contraste entre Caos e Criação19.
Esse criar a partir do caos inaugura um horizonte; um solo de onde o homem primitivo lança-se em direção ao mundo. O mito é uma interpretação do mundo fenomenal e, como na figura de Hermes, tem o poder de tornar compreensível aos homens a fragmentariedade do mundo das coisas. E se Hermes tinha por função tornar compreensíveis aos homens os desígnios das divindades, o mito tem por função o inaugurar de um horizonte humano, de uma paisagem confortável o bastante para se tornar morada humana. Toda a existência do homem adquire um sentido ao ser iluminado pela narrativa mítica. A natureza é explicada e torna-se acessível. Assim como explicáveis e acessíveis tornam-se o Outro e o mundo das coisas. O mito é uma linguagem que possibilita a estruturação do homem; é o lastro que o prende ao mundo. É um ver-como a partir de um horizonte, e é “dentro de um horizonte, ou apenas na inscrição de um horizonte, que toda significação se pode dar”20.
É o mito que oferece a possibilidade de experiência do mundo das coisas; e o oferece como sendo um modelo a seguir. O mito é uma referência para a atividade criadora do homem, estabelece uma esperança à tarefa humana de lançar-se ao mundo. Diante do ato mítico primordial, o homem primitivo tem assegurado o sucesso de sua própria tarefa:
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima quando o Herói mítico a realizou num tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De modo análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem, quando se sabe o que é preciso fazer?21
O mito, como modelo, possibilita a estruturação e organização do homem e do mundo. Podemos perceber como, nas sociedades primitivas, o mito se estabelece como referência à organização social, como sustentáculo de toda uma forma de vida. Fustel de Coulanges (1830-1889), na introdução de sua obra A Cidade Antiga, chama-nos a atenção para esse aspecto estruturador do mito:
Atentai nas instituições dos antigos sem pensar nas suas crenças, e achá-las-eis obscuras, extravagantes, inexplicáveis. Porque patrícios e plebeus, patrões e clientes, eupátridas e tetas, e donde precedem as diferenças nativas e indeléveis que encontramos entre essas classes?22
Esse aspecto modelar do relato mítico pode ser encontrado também nas narrativas homéricas, onde servem de exemplo de virtude, piedade, astúcia, justiça. Através do mito o homem adquire um paradigma para sua ação. Mircea Eliade nos informa que uma das funções do mito “consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao mundo e à existência humana”23. Continuando com Eliade poderíamos dizer que o mito “narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição”24. Entre os índios Xingu, por exemplo, encontramos um relato que procura explicitar a criação do mundo e das tribos pelo deus Mavutsinim. Nesse relato, encontramos a justificação para o uso de determinadas armas por cada tribo:
Foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas: a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de tronco, resolveu criar as tribos Kamaiurá, Kuikuro, Waurá e Txucarramãe. Cada uma delas escolheu uma arma, ficando a tribo Waurá com as panelas de barro. Mavutsinim pediu aos Kamaiurás que tomassem a espingarda, mas eles preferiram o arco preto. Os Kuikuros ficaram com o arco branco e os Txucarramães preferiram a borduna. A espingarda sobrou para os brancos.
A população aumentou em demasia e Mavutsinim resolveu separar os grupos. Mandou que os Txucarramães fossem para bem longe, pois eram muito bravos. Os homens brancos foram para as cidades, bem distante das aldeias, pois tinham muitas doenças e com as armas de fogo viviam a ameaçar a vida de outros grupos. Dessa forma, as tribos puderam descansar em paz25.
Todo o sentido da existência, para o homem primitivo, pode ser encontrado nos relatos míticos; ela nada mais é que um fruto do desenrolar do processo mítico e, “assim como o homem moderno se considera constituído pela história, o homem das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo número de eventos míticos”26. O mito instala-o num horizonte significativo e o homem primitivo passa a pertencer a um mundo pela magia do relato mítico.
Esse aspecto modelar do mito pode ser observado nas cerimônias ritualísticas, nas quais o homem primitivo repete o ato gerador que deu origem ao cosmo, à sua tribo ou a um costume. O ritual é uma recriação da ordem uma vez inaugurada por um ente sobrenatural. O gesto ritualístico funciona como um arquétipo à ação humana, permitindo que este reconquiste o mundo com aquele gesto primordial outrora realizado pelo ente sobrenatural ou pelo herói mítico. Através do rito, “ele conquista infatigavelmente o mundo, organiza-o, transforma a paisagem natural em meio cultural”27. É através desse gesto, realizado num tempo sagrado que o homem primitivo confere validade ao tempo profano; graças ao modelo revelado pelo mito, o homem se torna um criador, uma vez que o rito tem o poder de transformar o desconhecido – o caos – num cosmo, num habitat legitimado pela intermediação mítica.
A cerimônia ritualística, o reengendramento do gesto arquetípico por parte do ritual tem a capacidade de dotar o homem de um poder criador, permitindo que este se lance criativamente no mundo das coisas. O homem, a exemplo do herói mítico, torna-se capaz de colocar a natureza a seu serviço, ele é dotado da mesma magia cósmica presente no herói. O mito é um incitamento à ação, uma vez que doa ao homem a capacidade de lançar-se no mundo fenomenal. O rito traz a possibilidade de reviver o tempo sagrado no tempo profano; a cotidianidade é perpassada pelo sagrado. Todo ato cotidiano é precedido por um rito, evoca um tempo sagrado: o rito da caça, o rito da fecundidade da terra e da mulher, o rito da chuva e do sol. O mundo profano torna-se válido pela mediação ritual, que tem o poder de tornar novamente presente o ato gerador de tal ordem. É o tempo sacro, o tempo que tem a possibilidade de retomar os fundamentos de constituição do mundo, que inaugura o fluxo existencial. Passado, presente e futuro só o são em referência àquele ato primordial, doador de sentido ao mundo fenomenal e à existência humana como um todo.
Além de se colocar como paradigma de estruturação social e de ação, o mito expressa um paradigma para a subjetivação do homem primitivo. Ao instaurar um mundo humano, dotado de sentido, o mito cria uma gama de referências existenciais para o homem das sociedades arcaicas. O herói, o deus maldoso, são pontos referenciais na condução da vida humana como um todo. O mito tem o poder de lançar o homem numa comunidade de sentido, de onde ele parte para a sua construção como indivíduo singular. O horizonte mítico é o solo, e é nesse solo, e não em si mesmo, que ele encontra sua significação; é lá no tempo fabuloso, no herói mítico, que ele encontra o modelo de sua conduta e quais são os alcances e os limites de sua liberdade. Se buscarmos auxílio naquelas filosofias do mundo-da-vida, poderemos dizer que o mito tem por uma de suas funções justamente a inauguração desse mundo, de um horizonte comum de onde o homem retira os elementos necessários à sua autoestruturação. Há um diálogo entre o homem e aquela tradição que o contém, diálogo esse viabilizador da estruturação do homem em toda a sua plenitude. Um mundo o precede, o mundo inaugurado pelo mito, um mundo referencial, significativo, indicador de condutas éticas, de formas de relacionar-se e de códigos de conduta. Se assim foi feito no tempo fabuloso, se assim o herói mítico se comportou diante de tal situação, assim deve ser feito agora, uma vez que o tempo primordial é referência de ação. O homem estruturar-se-á como pertencente a essa tradição, como aquele que pratica tais ritos, que caça dessa ou daquela forma. A identidade do mundo é dada pelo mito, assim como a identidade do homem primitivo também é dada pelo poder criador do mito. O homem se lança, age, porta-se e apreende a realidade através da clareira aberta pelo relato mítico. É naquele ato primordial, por um fiat proferido num tempo fabuloso que o homem primitivo se reconhece como presença num mundo, um mundo dotado de sentido, um horizonte ameno e hospitaleiro criado pela magia e pelo poder do mythos.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

(Escrito por Ricardo Velez)



MITO E LOGOS NAS ORIGENS DA RACIONALIDADE HUMANA




O mito pode ser definido como uma explicação do atual por um acontecimento primordial que está sempre presente, havendo um liame, através do rito, entre o atual e o primordial.

Em decorrência do fato de o mito se referir a um acontecimento primordial para explicar o atual, situa-se num espaço e num tempo sagrados, que conferem validade ao espaço e tempo profanos, constitutivos da cotidianeidade. Dessa forma, o mito pressupõe uma dimensão vertical, que se ergue por sobre a horizontalidade dos fatos humanos. O mito explica o tempo e o espaço cotidianos pelo espaço e tempo sagrados. Daí que na linguagem mítica os relatos comecem, geralmente, com a seguinte expresão: “Naquele tempo...”, (“in illo tempore...”).


O mito é um modelo. É o ponto de referência de toda atividade e de toda eficácia. Pelo fato de o mito, através do rito, estabelecer um liame entre o atual e o primordial, possui uma dimensão mágica, ou seja, produz resultados. O rito não é apenas uma encenação, uma repetição. É uma ação eficaz. Produz resultados, como dizem os teólogos “ex opere operato”, ou seja imediatamente. As mesmas palavras que moldaram o Universo são utilizadas nos ritos de fecundidade. Os ritos de orientação repetem essa mesma dinâmica, ou seja, trazem para a cotidianieidade humana os atos arquetípicos de fundação do mundo e de estabelecimento dos pontos cardeais. O mundo é considerado como emergindo de um caos e de um espaço não organizado. Os ritos que lembram a fundação da cidade (como, por exemplo, os que se referiam à fundação de Roma), referem-se, analogamente, à formação do cosmo. A cidade é um microcosmo, imita o mundo.


Precisamos distinguir dois tipos de mito: cosmogônicos e de origem. Os primeiros referem-se à organização primeira do Universo. Os segundos tentam explicar o início de uma instituição ou de um costume. Exemplo dos primeiros é o poema mesopotâmico Enuma Elish, que relata a formação do mundo, a partir das águas primordiais. Exemplo dos segundos é o mito da fundação de Roma por Rômulo e Remo, depois de terem sido salvos e amamentados por uma loba.


Centremos a atenção nos mitos cosmogônicos. Em que pese a sua diversidade, encontramos neles uma estrutura semelhante: são triádicos. Do ponto de partida unitário e original, emergem dois princípios que se contrapõem, sendo um deles masculino e ativo e o outro feminino e passivo. A contraposição desses elementos secundários repete-se em todos os seres do cosmo, sendo que todos eles tendem à busca da unidade perdida.


Na cultura indiana encontramos três relatos cosmogônicos desse feitio. Na tradição dos Vedas, por exemplo, tudo provém de Purusha (o homem côsmico), de onde emergem o Céu e a Terra, a partir dos quais se formam todos os seres. Na tradição dos Brâmanes, por sua vez, tudo decorre de um princípio único, as Águas Primordiais, de onde surgem o Ovo Côsmico e Prajápati, sendo que desses dois elementos é feito o mundo. Já na tradição dos Upanishads encontramos uma origem de tudo, Rajas (elemento ativo), de onde provém Sattva (elemento luminoso) e Tamas (elemento escuro), princípios a partir dos quais se forma o cosmo.


Na cultura chinesa encontramos uma unidade originária, Pan-Kou ou Pan-Gou (o homem primordial), de onde surgem Yang (princípio ativo e masculino) e Yin (princípio passivo e feminino), a partir dos quais se forma o mundo, sendo que em todos os seres há um princípio ativo e um princípio passivo. Uma estrutura mítica semelhante encontramos na cultura mesopotâmica, no relato do Enuma Elish (que era recitado pelos sacerdotes no Ano Novo) e segundo o qual tudo provém de uma origem única, Apson (as águas primordiais), de onde surgiram dois princípios contrapostos, Marduk (a luz) e Tiamat (as trevas), que travam um combate no qual Marduk vence Tiamat e o divide em dois, formando com uma metade a abóbada celeste e com a outra a terra. Essa estrutura mitológica foi o quadro de referência do mito da criação que aparece no livro do Gênese, na Bíblia judaico-cristã, no relato cunhado à luz da Tradição Sacerdotal, que recolheu a influência mesopotâmica durante o Cativeiro da Babilônia. Efetivamente, nessa narrativa bíblico o Caos primordial antecede a tudo, sendo que o Ruaj de Elohim (o sopro de Deus) paira sobre o Abismo e o organiza, criando em primeiro lugar a luz, colocando a seguir no cosmo astros e estrelas, separando logo as águas inferiores das superiores, fazendo surgir das águas inferiores a terra e colocando nela, por último, pedras, vegetais, animais e homens. No livro do Gênese, aliás, encontramos um relato da criação do cosmo mais arcaico do que o mencionado: trata-se da narrativa configurada à luz da Tradição Yahvista, segundo a qual do Lodo primordial Yahvé formou o homem, soprando no seu nariz o seu Sopro de Vida e fazendo-o, assim, à sua imagem e semelhança.


Na cultura grega encontramos, por sua vez, uma origem primordial de tudo, o Caos, de onde surgem o Céu (Uranos), princípio ativo, luminoso e masculino, e a Terra (Gaia), princípio passivo, escuro e feminino. Ora, a partir de Uranos e Gaia forma-se primeiro o cosmo e depois o homem. Da luta entre Uranos e Gaia surge uma primeira geração de figuras mitológicas monstruosas (Titãs, Ciclopes e Hecatôngiros), que simbolizam as forças cegas da natureza. O homem é formado a partir da união entre Chronos (um dos Titãs, portanto filho de Uranos) e Rhea, filha do Caos. A vida humana é simbolizada como uma luta que o homem deve travar entre a consciência (representada por Zeus) e as tendências instintivas e inconscientes (simbolizadas nos irmãos de Zeus: Poseidon – satisfação perversa do desejo -, Hades – inibição perversa do desejo -, Hestia – pureza que despreza a libido -, Demeter – instinto da fecundidade – e Hera – símbolo do amor e da libido -).


O relato mítico grego foi legado à posteridade através da obra de Hesíodo intitulada A Teogonia. A natureza é apresentada ali como manifestação progressiva dela mesma, através de uma série de etapas. Trata-se de uma revelação com caráter ôntico, porquanto a natureza se revela em várias ordens de ser. Mas, de outro lado, há uma certa organicidade nesse se revelar a natureza, pois cada grau dela está implicado no anterior.


A respeito, frisa Jean Ladrière comentando os aspectos fundamentais do mito cosmogônico grego: “Há um sentido ontológico, pois essa sucessão de níveis deve ser interpretada como um encaixar os fundamentos. Cada etapa, efetivamente, permanece no interior das etapas ulteriores. O que significa que cada dobra da realidade continua exercendo a sua virtude no interior das dobras subseqüentes. Isso significa, ainda, de um ponto de vista mais abstrato, que cada uma dessas dobras da realidade representa verdadeiramente uma condição da realidade global. A sucessão significa que cada etapa permanece presente no interior das seguintes, que cada etapa é condição para as ulteriores. Temos, assim, um encadeamento de condições, ou ainda um encadeamento de fundamentos. De outro lado, todo esse processo se origina no Caos. Este não é uma simples desordem, nem uma mistura primordial. É, pelo contrário, o pano de fundo em que tudo aparece. É a unidade que abarca e sustenta tudo. Além disso, a formação do mundo é explicada por uma oposição de princípios contrários. Temos um princípio ativo e um princípio passivo, um princípio celeste e um princípio terrestre. O Céu é o espaçio concebido como receptáculo universal. Ao mesmo tempo, é o elemento luminoso, formador, legislador, o elemento que é princípio de ordem. A Terra ou Gaia, de outro lado, é uma potência de desordem, é um princípio de opacidade, é aquilo que opõe resistência à difusão da forma, é o que em virtude dessa resistência explica a limitação e a divisão. A união do Céu e da Terra enseja o processo gerador. Dessa forma, o movimento fundamental da realidade é o encontro dos dois elementos, Terra e Céu. Esse encontro é ao mesmo tempo luta, oposição e complementariedade” [Ladrière, 1967].


O mérito dos presocráticos consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos. Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elementos de que tudo se constituía. Uns enfatizam a água, outros o fogo, outros a terra, outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo á água, não se refere exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria a conditio sine qua non de tudo. Embora fose também um físico, preocupado com a análise experimental dos elementos.


Mas é no mito onde a metafísica grega, já mais evoluída após o ciclo presocrático, vai encontrar a inspiração para a estrutura concentual com que tenta representar a realidade. A imagem do Caos será substituída na metafísica aristotélica pelo conceito de Ser, ao passo que Uranos será traduzido como Ato e Gaia como Potência. Temos, assim, os elementos fundantes da metafísica da potência e do ato, que servirá de base conceitual à filosofia ocidental até o início do período moderno.


Augusto Comte tinha formulado a Lei dos Três Estados, segundo a qual a razão humana percorre três etapas ao longo da sua evolução, tanto do ponto de vista da ontogênese (nos indivíduos), como da filogênese (na espécie). Ora, segundo esse postulado, tanto o homem individual quanto a espécie humana primeiro representaram e explicaram o mundo teologicamente ou seja em imagens míticas, e somente depois foram capazes de pensar de maneira filosófica ou metafísicamente, para, por último e como fruto da evolução progressiva da razão, chegarem a elaborar explicações positivas ou científicas, que constituiriam a mais perfeita e definitiva forma de conhecimento, que dispensaria as outras duas.


A explicação de Comte tem uma parte verdadeira e outra falsa. A verdadeira consiste em ter reconhecido três formas de conhecimento intimamente ligadas entre si, a mítica, a metafísica e a científica. A parte falsa consiste em ter formulado essas três modalidades como se excluindo temporalmente, pensando que a metafísica excluiria o mito e que a ciência excluiria as outras formas de conhecimento que lhe possibilitaram o surgimento. Trata-se, pois, de recuperar a validade da teoria comteana, inserindo as três formas de conhecimento num quadro de contemporaneidade. Afinal mito, metafísica e ciência, são três formas de conhecimento complementares, que se pressupõem e que não podem se invalidar mutuamente. Cada uma delas fornece um tipo de conhecimento qualitativamente diferente. Mesmo que dominemos as ciências, não podemos abjurar os mitos (que se exprimem hodiernamente nos credos religiosos ou nas tradições populares), e tampouco poderemos exorcizar a filosofia (que resgata a dimensão holística e de sentido da existência). 
BIBLIOGRAFIA

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COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. (Tradução de José Arthur Giannotti). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores.

DROZ, Geneviève. Os mitos platônicos. (Tradução de Maria Auxiliadora Ribeiro Kneipp). Brasília: Editora da Un B, 1997.

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LADRIÈRE, Jean. Éléments de critique des sciences et de cosmologie. Université de Louvain, 1967.

ROBERT - FEUILLET. Introducción a la Biblia. Vol I. (Trad. de A. Ros). Barcelona: Herder, 1965.







E, em outros tempos...



A meditação filosófica da Renascença é rica e variada. Poderíamos destacar uma característica marcante do pensamento nesse período: a sua ânsia de renovação e de expansão, livre já do controle teológico que vingou na Idade Média, notadamente durante o século XIII. A filosofia, a arte, a ciência, a política, sentem-se desimpedidas para trilhar o seu próprio caminho. A Renascença é o eclodir desse surto de criatividade e de liberdade.





Os ideais desse período são sintetizados no chamado Humanismo. Em que consiste esse fenômeno? Ivan Lins (1904-1975) responde na sua obra Erasmo, a Renascença e o Humanismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 96): "Consiste no estudo das boas letras e, particularmente, das letras gregas e latinas. Deve-se, entretanto, notar, com Brentano, que, em fins do século XV, quando adquiriu pleno surto, consistiu o humanismo, essencialmente, no cultivo dos conhecimentos que visavam à felicidade e ao aperfeiçoamento do homem, em oposição às cogitações dos teólogos, os quais, voltados para Deus, consideravam a Terra passageiro exílio. Dessa oposição típica entre o homem e Deus, entre a Terra e o Céu, tirou o humanismo o seu nome".





Representante significativo do pensamento Renascentista foi Galileu Galilei. Nasceu em Pisa, em 1564. Matriculou-se na Escola de Artes da sua cidade, em 1581, com a finalidade de estudar medicina. Contudo, não terminou o curso e dedicou-se aos estudos da matemática, que eram os seus prediletos, ao lado da observação dos fenômenos físicos. Em 1589 foi nomeado catedrático de matemática na Universidade de Pisa. Em 1604, após longos períodos de experimentação na Torre Inclinada da cidade natal, Galileu formulou a lei da queda livre dos corpos, elemento básico para a mecânica racional. Em 1610 deu início às suas observações astronômicas e passou a trabalhar em Florença, sendo protegido de Cosimo II de Médici. A descoberta, por Galileu, das manchas solares, acarretou para ele a ira dos teólogos, porquanto a hipótese do nosso autor colocava em risco a suposição da harmonia cósmica e da perfeição dos corpos que integravam as camadas superiores do Céu, que deveriam ser constituídos de “matéria pura”, sem manchas. As autoridades vaticanas obrigaram-no a não mais ensinar as teorias de Copérnico, bem como as hipóteses levantadas sobre as manchas solares. Durante algum tempo Galileu ficou calado. Mas, em 1623, após polêmica com um padre jesuíta acerca da natureza dos cometas, Galileu voltou a insistir nas suas observações, criticando acirradamente as observações de Aristóteles acerca do cosmo. Os teólogos romanos voltaram à carga, obrigando Galileu a se apresentar no Tribunal do Santo Ofício. Condenado pela Inquisição romana em junho de 1633, nosso autor foi obrigado a abjurar acerca das suas teorias científicas, a fim de não sofrer a tortura a que tinha sido submetido, em 1600, outro grande cientista e pensador, Giordano Bruno. Recolhido à sua casa, o nosso autor dedicou-se, nos últimos anos de vida, a reescrever alguns dos seus livros. Faleceu em 1642.





Estas são as principais obras de Galileu: Defesa contra as calúnias e imposturas de Baldessar Capra (1607), Mensageiro celeste (1610), Discurso sobre as coisas que estão sobre a água (1612), História e demonstrações sobre as manchas solares (1612), Discurso sobre o fluxo e refluxo do mar (1616), Diálogo sobre os dois maiores sistemas (1623), O Ensaiador (1623), Discurso sobre duas ciências novas (1638).





Elementos fundamentais da filosofia galileana acerca do conhecimento.





Em cinco pontos podem ser resumidos os aspectos fundamentais da Teoria do Conhecimento de Galileu:





1. Aspecto fundamental da contribuição de Galileu: a fundamentação do método científico. Este teria, no sentir do pensador, quatro passos básicos, que seriam, em primeiro lugar, a observação dos fenômenos, tal como estes são apreendidos pelo observador, afastados os preconceitos extracientíficos; em segundo lugar, a formulação da hipótese, como explicação tentativa que deveria ser confirmada; em terceiro lugar, a experimentação, em virtude da qual toda afirmação sobre fenômenos naturais deveria ser verificada, mediante a produção do fenômeno em determinadas circunstâncias, ou mediante a observação sistemática dos fatos objeto da ciência e, em quarto lugar, a formulação da lei, que seria possível graças à identificação de regularidades matemáticas na natureza.





O estudioso brasileiro José Américo Motta Peçanha sintetizou, da seguinte forma, o alcance da contribuição galileana, no terreno da ciência e da filosofia: “Formulando esses princípios, Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a idéia de que o mundo possui uma estrutura finita, hierarquicamente ordenada, e substituiu-a pela visão de um universo aberto, indefinido e até mesmo infinito. Em lugar de conceber o mundo como dividido em duas partes, uma superior, constituída pelo Céu, e outra inferior, a Terra em que vive o homem, mostrou que todos os objetos físicos devem ser concebidos como sendo da natureza e tratados de modo idêntico, pelo menos por aqueles que desejam conhecer cientificamente o Universo. Pôs de lado o finalismo aristotélico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a natureza é, fundamentalmente, um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antigüidade. Demonstrou o engano do espírito puramente lógico e dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica, quando aplicado à explicação dos fenômenos físicos. E mostrou, finalmente, que o livro do universo está escrito em caracteres matemáticos e que sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão compreendê-lo” [José Américo Motta Peçanha, “Galileu, vida e obra”, in: Galileu, O Ensaiador, tradução de Helda Barraco et alii, São Paulo: Nova Cultural, 1987, pg. VIII-IX].





2. Adoção do ponto de vista cinemático, que antecipava a perspectiva transcendental kantiana, o que tornou Galileu o fundador da física moderna. O ponto de vista cinemático é caracterizado pelo físico e filósofo belga Jean Ladrière em dois pontos: em primeiro lugar, interesse centrado no estudo dos fenômenos observados, mediante o método experimental e a matematização dos dados obtidos; em segundo lugar, abandono definitivo da preocupação em torno às causas dos fenômenos, que remeteria à existência de uma substância oculta sob os mesmos.





Galileu firmou, no terreno das ciências, uma nova maneira de abordar os fenômenos, não como véus que ocultam a substância, na busca de uma pretensa realidade metafísica (tá metà tà fysikà), mas como algo que deve ser observado e que constitui o real apreendido pelos nossos sentidos. A propósito dessa contribuição galileana, escreveu José Américo Motta Peçanha: “Galileu tornou-se o criador da física moderna, quando enunciou as leis fundamentais do movimento; foi também um dos maiores astrônomos de todos os tempos, pelas observações pioneiras que fez com o telescópio. Essas descobertas, contudo, foram resultado de uma nova maneira de abordar os fenômenos da natureza, e nisso reside sua importância dentro da história da filosofia. No campo das idéias filosóficas, Galileu é mais importante pelas contribuições que fez ao método científico, do que propriamente pelas revelações físicas e astronômicas encontradas em suas obras” [Motta Peçanha, ob cit., p. IX].





3. Valorização das matemáticas como instrumento para o conhecimento científico: Galileu estabeleceu um nexo indissolúvel entre ciência e matematização da natureza. As matemáticas, segundo o pensador, aproximariam a nossa razão do entendimento divino, numa retomada da via mística dos pitagóricos e do neoplatonismo. No entanto, tanto em Galileu como posteriormente em Newton, as matemáticas estavam também inseridas numa exigência epistemológica diferente da cultuada na Antigüidade: se bem esse tipo de conhecimento nos aproximasse da Inteligência Divina, no entanto, elas permitiam a tradução exata dos fenômenos naturais apreendidos pela experiência.





Em relação a essa valorização do conhecimento matemático, Galileu frisava: “O intelecto humano compreende algumas proposições tão perfeitamente e tem tão absoluta certeza, quanto pode ter a própria natureza; e isso ocorre nas ciências matemáticas puras das que o intelecto divino sabe, não obstante, infinitas proposições a mais, pois as sabe todas; mas das poucas entendidas pelo intelecto humano, creio que o seu conhecimento iguala-se à certeza objetiva divina, porque chega a compreender a necessidade, sobre a qual não parece poder existir segurança maior” [Galileu, citado por Rodolfo Mondolfo, in: Figuras e idéias da filosofia na Renascença, tradução de Lycurgo Gomes da Motta, São Paulo: Mestre Jou, 1967, p. 130].

Rodolfo Mondolfo destacou, por sua vez, o caráter de exatidão que as matemáticas possuem segundo Galileu, insistindo em que nesse aspecto, bem como na possibilidade de todos os homens terem acesso a esse tipo de conhecimento, consiste propriamente a “divindade” postulada. A respeito, afirma Mondolfo: “Ao privilégio atribuído pelos místicos aos poucos eleitos que podem chegar ao arroubo do êxtase, substitui-se (...) uma possibilidade aberta a todos os que submetem a sua mente aos processos e métodos do pensamento científico” [Mondolfo, ob. cit., p. 130].





4. Exaltação da liberdade de pensamento, como condição necessária para a ciência. Galileu, bem como os restantes filósofos do período Renascentista, notadamente Giordano Bruno, Leão Hebreu e Leonardo da Vinci, insiste em que, sem liberdade, perde-se o maior bem que um homem pode ter na face da Terra: o conhecimento das leis da natureza como manifestações da presença divina no Cosmo e o reconhecimento, no próprio homem, de que na luz da razão, livremente exercida, reside a sua maior dignidade.





5. Defesa da ética do cientista: buscar diuturnamente a verdade científica e comunicá-la com fidelidade aos seus semelhantes. Esse é o tema que prevalece na obra de Galileu, O Ensaiador. No seguinte trecho dessa obra, o pensador e cientista italiano deixa claro que, para fazer ciência, é necessário se afastar do argumento de autoridade e da busca pura e simples da popularidade, a fim de partir, com coragem, para a exploração da natureza, para interpretar os fenômenos da mesma com a ajuda da matemática. Frisa a respeito Galileu, ao rebater as maquinações de Lotário Sarsi, um dos seus detratores: “Parece-me também perceber em Sarsi sólida crença que, para filosofar, seja necessário apoiar-se nas opiniões de algum célebre autor, de tal forma que o nosso raciocínio, quando não concordasse com as demonstrações de outro, tivesse que permanecer estéril e infecundo. Talvez considere a filosofia como um livro e fantasia de um homem, como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa menos importante é a verdade daquilo que apresentam escrito. Senhor Sarsi, a coisa não é assim. A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” [Galileu, O Ensaiador, ob. cit., p. 21].