Durante muito tempo na história do pensamento o mito foi visto como uma expressão menor do espírito humano, sendo abordado mais como uma fantasia pueril do que como uma autêntica forma de expressão. Concebia-se a ideia de que o mito era tão somente fruto da imaginação do homem, especulação ingênua daqueles que habitavam tempos primitivos e que ainda não tinham meios de fazer uma distinção entre o “real” e o ”fantasioso”. Aqueles que enxergavam o mito por esse âmbito, concebiam-no como uma forma que “suspeita” o real, mas que, por carecer da luz da razão, não consegue apreendê-lo em toda a sua plenitude. O mito é uma forma não racional de acesso à totalidade das coisas, e esse acesso não se dá de maneira plena pelo fato de ainda não dispor do uso da racionalidade; o que ele consegue revelar é apenas um emaranhado de sombras e equívocos.
Essa abordagem dos relatos míticos como uma forma de expressão menor do espírito humano teve, no pensamento ocidental, o seu início com a emergência da filosofia como nova e revolucionária forma de apreensão do real. No momento do alvorecer do questionamento filosófico, temos a contraposição entre o mythos e o logos. O mito foi entendido pelos primeiros pensadores gregos como uma ficção, como descrição não racional do mundo e do homem; uma descrição que deveria ser abandonada, pois, de acordo com o emergente modo de apreensão, só a razão pode ser seguro caminho para a compreensão do cosmo e do homem. Tal posição parece ter sido assumida pela maioria dos pensadores do período clássico. No Fedro, Platão (427 a.C – 347 a.C), um dos pilares do pensamento ocidental vai assumir uma atitude de menosprezo em relação aos relatos míticos:
Eu caro Fedro, acho tudo isso muito bonito, mas é um trabalho para um homem de grande inteligência, a quem o esforço não intimida, e aí não encontramos felicidade. Além disso, seria necessário interpretar, a seguir, a figura dos Hipocentauros, a da Quimera, e finalmente uma multidão de Górgonas e de Pégasos, um número pasmoso de outras criaturas inexplicáveis e lendárias. Se, por incredulidade, se procura dar verossimilhança a esses seres, usando para isso de uma curiosa e grosseira sabedoria, perde-se nisso o tempo, e não podemos apreciar a vida como convém1.
Como bem se pode perceber, há um forte desprezo em relação ao mito e à sua significação, uma vez que este parece não dispor do elemento racional, tão caro à filosofia platônica. Sobre esse menosprezo em relação à narrativa mítica, não só no âmbito da filosofia de Platão, mas em todo pensamento ocidental, assim se expressa o romeno Mircea Eliade (1907-1986):
Todos sabem que, desde os tempos de Xenófanes (cerca de 565-470 a.C) – que foi o primeiro a criticar e rejeitar as expressões “mitológicas” da divindade utilizadas por Homero e Hesíodo – os gregos foram despojando progressivamente o mythos de todo valor religioso e metafísico. Em contraposição ao logos; assim como posteriormente à história, o mythos acabou por denotar tudo “o que não pode existir realmente”. O judeu-cristianismo, por sua vez, relegou para o campo da “falsidade” ou “ilusão” tudo o que não fosse justificado ou validado por um dos dois Testamentos2.
Essa postura em relação ao mito parece diminuir sensivelmente com o desenrolar da história do pensamento ocidental, a ponto de, no século XVII, Giambattista Vico (1668-1744) compreender a narrativa mítica como uma forma de conhecimento que se situa numa perspectiva diferente da perspectiva racional. Se levarmos em conta o pensamento contemporâneo, veremos que o desprezo em relação ao mito parece ter recuado de modo sensível, uma vez que filósofos como Ernst Cassirer (1874-1945) compreenderam o mito como uma importante criação do espírito humano, devendo ser levado em conta em qualquer estudo que se faça sobre o homem e a construção da cultura.
O mito, portanto, pode ser abordado como uma explicação do mundo que difere da explicação racional; uma explicação válida, uma vez que a realidade pode ser explicitada e organizada por vias outras que não aquela dada pelo discurso conceitual. Poderíamos dizer que tanto a explicação mítica quanto a indagação filosófica têm a possibilidade de desvelar os mistérios do mundo, do tempo, espaço e da existência humana. O mito coloca o homem diante do inexplicável do mundo das coisas, da existência cotidiana que quase sempre se lhe mostra hostil, intangível, papel também desempenhado pela indagação filosófica, que desperta o homem para a riqueza, alcance e limitações do mundo fenomenal e de sua própria existência. Mircea Eliade, em Mito e Realidade, assim explicita essa mudança de enfoque em relação às narrativas míticas:
Há mais de meio século, os eruditos ocidentais passaram a estudar o mito por uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX, por exemplo. Ao invés de tratar, como seus predecessores, o mito na acepção usual do termo, isto é, como “fábula”, “invenção”, “ficção”, eles o aceitaram tal qual era compreendido pelas sociedades arcaicas, onde o mito designa, ao contrário, uma “história verdadeira” e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado, exemplar e significativo3.
O mito constitui-se num conhecimento verdadeiro no momento em que abordado como tentativa humana de compreender e adaptar-se ao fenomênico. Sob este aspecto, torna-se infundada a tentativa de opor o mito ao conhecimento conceitual/racional, como se aquele fosse “fantasioso” e este fosse expressão da verdade absoluta. Com Merleau-Ponty poderíamos dizer que “a realidade não é uma aparência privilegiada que permaneceria sob as outras, ela é a armação de relações às quais todas as aparências satisfazem”4. O mito é uma construção humana com vistas a apreender a totalidade do mundo. Podemos dizer que os relatos míticos “constituem instrumentos do conhecimento do real de uma qualidade e legalidades próprias”5. Destitui-se, desse modo, o discurso conceitual como o único portador de um significativo conhecimento estruturador da existência humana e busca-se outras formas que possibilitem expressar essa mesma existência.
O mito é o primeiro espanto do homem diante do mundo, é a constatação da multiplicidade que caracteriza o mundo fenomenal. É portanto uma forma de organizar e de dotar esse mundo fenomenal de uma unidade. O mito é uma expressão da angústia humana frente a polivocidade do mundo fenomenal, “é a explicação do mundo (…) como ‘percepção unificadora’ e ‘organização eficaz’”6.
É interessante notar que essa expressão unificadora se elabora a partir de um horizonte vivencial, o que nos permite dizer que o mito é uma estrutura que faz um apelo à afetividade. O conceitual, o abstrato, o refletido, parece, na maioria das vezes, distante do relato mítico. É na descrição do natural, do cotidiano, do encontro com a natureza que opera a narrativa mítica; ela organiza o mundo vivido, experienciado, do homem primitivo através de um apelo à afetividade. Não há um saber abstrato das coisas da natureza, das forças naturais, elas, antes, convivem no cotidiano humano e, muitas vezes, comportam-se como o humano, como o homem. Como Cassirer nos chama a atenção, “o espaço primitivo é um espaço de ação; e a ação está centrada em torno das necessidades e interesses práticos imediatos”7. O mito surge como possibilidade de instauração de um sentido ao mundo fenomenal, um mundo imediatamente vivido, mundo no qual o homem está encerrado e no qual realiza sua existência:
Na medida em que o homem primitivo leva a cabo atividades técnicas no espaço, em que mede distância, dirige sua canoa, arremessa seu dardo contra determinado alvo e, assim por diante, não difere, do nosso, em sua estrutura. Mas quando o homem primitivo faz deste espaço um tema de representação e pensamento reflexivo, surge uma ideia especificamente primordial, que difere radicalmente de qualquer versão intelectualizada. A ideia do espaço, para o homem primitivo, mesmo quando sistematizada, está sincreticamente ligada ao tema. É uma noção muito mais afetiva e concreta que o espaço abstrato do homem de cultura avançada… Não é tão objetiva, mensurável e de caráter abstrato. Revela características egocêntricas ou antropomórficas, e é fisionômico-dinâmica, arraigada no concreto e no substancial8.
O tempo e o espaço, para o homem primitivo, são tempo e espaço vivenciais e não abstratos. Vive-se com o mito, unido a ele na cotidianidade. Em todo aspecto da natureza, em todo seu aparecer e, analogamente, em todo o comportamento humano pulsam a influência mítica, a ira ou a benevolência das divindades. O homem primitivo que conhece tão bem uma paisagem, um vale, ou um rio, conhece-o pelo contato imediato proporcionado pela vivência, por uma comunicação que une, através da perspectiva mítica, homem e natureza. Ele não se perde no rio pelo fato de ele lhe ser tão próximo, tão conhecido; pelo fato de ter sido, em tempos antigos, cativado pelos seus antepassados. O rio é um espaço de relações vivenciais: é o belo, o temeroso, o sereno, o colérico:
O mundo do mito é dramático – de ações, forças e poderes conflitantes. Em todo fenômeno da natureza, nada mais vê que o embate destes poderes. A percepção mítica está sempre impregnada dessas qualidades emocionais: o que se vê ou se sente é cercado de uma atmosfera especial – de alegria ou tristeza, angústia, excitação, exaltação ou depressão. (…) Todos os objetos são benignos ou malignos, amigos ou inimigos, familiares ou sobrenaturais, encantadores e fascinantes ou repelentes e ameaçadores9.
Esse aspecto afetivo das narrativas míticas, que a elas confere uma proporcionalidade antropológica, será criticado no alvorecer da filosofia, quando os filósofos pré-socráticos atentar-se-ão à carência do elemento racional das tradições míticas. Para esses pensadores, generosidade e inveja, avareza e amizade não são marcas de divindades, mas são, antes, características puramente humanas. O pré-socrático Xenófanes de Colofão (c. 570 a.-460 a.C) por exemplo, sustentará a tese de que as narrativas míticas do mundo grego são apenas aspectos humanos hipostasiados. Esses pensadores marcam a virada de um exprimir-se pela afeição para uma nova forma, qual seja, a expressão tipicamente racional. Vemos nesses pensadores uma tentativa de abandono das tradições míticas e um “fracasso”, pelo menos parcial, nessa mesma tentativa, uma vez que o modo de exprimir-se desses pensadores ainda assemelha-se ao modo de expressão característico do mito. Pitágoras, por exemplo, apesar de todas as suas conquistas abstratas no campo das matemáticas, vai “divinizar” o número e Tales, numa maneira análoga, vai dizer que tudo está cheio de deuses, querendo com isso expressar a sua ideia de uma unidade da physys:
O mérito dos pré-socráticos consistiu em terem traduzido as imagens do mito cosmogônico grego em conceitos. Mas essa tradução não foi instantânea. Primeiro começaram a falar em elemento de que tudo se constituía. Uns enfatizavam a água, outros o fogo, outros a terra, outros o ar. Mas o que lhes interessa é ir traduzindo as imagens em algo que não deixa de ser imagem, mas que, ao mesmo tempo, diz algo mais. Quando Tales de Mileto, por exemplo, diz que o constitutivo de tudo é a água, não se refere exclusivamente ao elemento físico, mas quer se remontar até o princípio de onde tudo provém. É por isso que Nietzsche considera que Tales é o primeiro metafísico, porque buscava enxergar a origem última dos seres, aquilo que seria a conditio sine qua non de tudo10.
O emergir de um mundo mítico marca a emergência de um mundo humano. Tal afirmação abre-nos a possibilidade de abordar o mundo mítico como uma tentativa de instauração de um sentido ao mundo natural por parte do homem. O mito aparece-nos, nesse âmbito, como um veículo de diálogo do homem com o mundo, um medium que possibilita a comunicabilidade entre o homem e o mundo fenomenal, o mundo das coisas. Através do mito, como bem nos elucida Cassirer, “o homem descobriu um novo método de adaptar-se ao meio”11. É justamente essa nova forma de adaptação que proporcionará ao homem uma face de penetração no mundo natural; um mundo que sem a mediação mítica apresenta-se ao homem como uma paragem fria, inabitável, destituída de um sentido. O mito tem o poder de transformar o mundo natural, o mundo dos fenômenos, numa hospitaleira morada, inaugurando assim um horizonte de onde o homem lança-se em direção ao mundo. Através do relato mítico, o mundo fenomenal adquire um sentido, uma unidade apreensível pelo homem. Com Cassirer, podemos dizer que “seria inteiramente impossível apreender e reter o mundo exterior, conhecê-lo e entendê-lo, concebê-lo e designá-lo, sem esta metáfora fundamental, (…) sem este ato de insuflar nosso próprio espírito no caos do objeto e de refazê-los, voltar a criá-los”12. O mito possibilita ao homem transcender a si mesmo e ao mundo, a polivocidade e incomunicabilidade desse mundo; “graças ao mito, o mundo pode ser discernido como cosmo perfeitamente articulado, inteligível e significativo”13. Como nos elucida Leszek Kolakowski (1927-2009), “o projeto mítico, que exige uma resposta à pergunta acerca da contingência do ser, tem sua raiz (…) na rota elementar do homem rumo à sua própria situação. É a tentativa de enfrentar ou de superar a experiência da própria heterogeneidade frente ao mundo”14(grifo nosso).
O relato mítico possui uma qualidade reconstituidora do mundo; é a possibilidade de, sobre o mundo fenomenal, inaugurar um mundo humano dotado de sentido. Como tal, o mito configura-se como esteio do mundo humano, uma vez que a heterogeneidade e incomunicabilidade do mundo fenomenal é superada. Pela mediação mítica, o homem passa a habitar num horizonte constituído de sentido; horizonte este que lhe permitirá se estruturar e lançar-se ao mundo das coisas. Um foco de luz é direcionado ao mundo fenomenal através do relato mítico, e é essa luz doadora de um sentido que permite ao homem transformar o mundo natural em habitat para si. Ao transformar o mundo natural num intrincado conjunto de eventos míticos, o homem primitivo adquire a segurança de um mundo que lhe é acessível; é a partir desse desenrolar de eventos míticos, a partir desse intrincado sistema de significações que o homem pode constituir-se como presença efetiva no mundo. Seguindo a Merleau-Ponty, poderíamos dizer que “o sujeito efetivo precisa primeiramente ter um mundo ou ser no mundo, quer dizer, manter em torno de si um sistema de significações”15 (grifo nosso). O mito é uma estrutura possibilitadora de transcendência do homem primitivo em relação a si e ao mundo fenomenal. Através do mito, o homem transcende a sua condição de heterogeneidade frente ao mundo das coisas, concatenando a polivocidade desse mundo num sistema mítico dotado de significação. O mito inaugura um ver-como e um ser-como; é a possibilidade de identificação de si como presença efetiva no mundo. Através do mito, o mundo fenomenal torna-se habitável, uma vez que estabelece um horizonte “articulado o suficiente para que os atos da vida cotidiana (…) sejam possíveis”16. (grifo nosso)
O mito é uma estrutura que permite a comunicação entre o mundo natural e o homem, uma comunicação que instaura um mundo cultural. Vale retomar Merleau-Ponty e com ele afirmar que “é comunicando-nos com o mundo que indubitavelmente nos comunicamos com nós mesmos”17. Um mundo de proporções antropológicas emerge pela força mítica, mundo que supera a falta de sentido e que permite ao homem viver entre os fenômenos. O mito é a possibilidade de superação do caos disforme que constitui o mundo natural. Com Cassirer, dizemos que “o homem só vive com as coisas na medida em que vive nestas configurações; ele abre a realidade para si mesmo e por sua vez se abre para ela, quando introduz a si próprio e o mundo neste médium dútil”18.
Estamos dizendo que o mito instaura uma comunicação entre o homem e o mundo fenomenal, inaugurando um mundo humano. Poderíamos dizer também que o mito instaura uma direção, um horizonte e uma ordem. Através das narrativas míticas podemos claramente perceber que um cosmos emerge de um caos primordial pela vontade de uma deidade ou pelo esforço de um heroico homem. O cosmo surge a partir dessa vontade e desse ato, o inacessível torna-se ordenado e acessível por essa vontade. Das trevas, um deus, ou um herói, faz emergir uma direção, um sentido; inaugura uma luz que permite o vislumbrar de uma ordem acessível ao homem. Nas palavras de Cassirer, “este sair da surda plenitude da existência para entrar em um mundo de configurações claras e verbalmente acessíveis é representada pelo mito, (…) pelo contraste entre Caos e Criação”19.
Esse criar a partir do caos inaugura um horizonte; um solo de onde o homem primitivo lança-se em direção ao mundo. O mito é uma interpretação do mundo fenomenal e, como na figura de Hermes, tem o poder de tornar compreensível aos homens a fragmentariedade do mundo das coisas. E se Hermes tinha por função tornar compreensíveis aos homens os desígnios das divindades, o mito tem por função o inaugurar de um horizonte humano, de uma paisagem confortável o bastante para se tornar morada humana. Toda a existência do homem adquire um sentido ao ser iluminado pela narrativa mítica. A natureza é explicada e torna-se acessível. Assim como explicáveis e acessíveis tornam-se o Outro e o mundo das coisas. O mito é uma linguagem que possibilita a estruturação do homem; é o lastro que o prende ao mundo. É um ver-como a partir de um horizonte, e é “dentro de um horizonte, ou apenas na inscrição de um horizonte, que toda significação se pode dar”20.
É o mito que oferece a possibilidade de experiência do mundo das coisas; e o oferece como sendo um modelo a seguir. O mito é uma referência para a atividade criadora do homem, estabelece uma esperança à tarefa humana de lançar-se ao mundo. Diante do ato mítico primordial, o homem primitivo tem assegurado o sucesso de sua própria tarefa:
O mito garante ao homem que o que ele se prepara para fazer já foi feito, e ajuda-o a eliminar as dúvidas que poderia conceber quanto ao resultado de seu empreendimento. Por que hesitar ante uma expedição marítima quando o Herói mítico a realizou num tempo fabuloso? Basta seguir o seu exemplo. De modo análogo, por que ter medo de se instalar num território desconhecido e selvagem, quando se sabe o que é preciso fazer?21
O mito, como modelo, possibilita a estruturação e organização do homem e do mundo. Podemos perceber como, nas sociedades primitivas, o mito se estabelece como referência à organização social, como sustentáculo de toda uma forma de vida. Fustel de Coulanges (1830-1889), na introdução de sua obra A Cidade Antiga, chama-nos a atenção para esse aspecto estruturador do mito:
Atentai nas instituições dos antigos sem pensar nas suas crenças, e achá-las-eis obscuras, extravagantes, inexplicáveis. Porque patrícios e plebeus, patrões e clientes, eupátridas e tetas, e donde precedem as diferenças nativas e indeléveis que encontramos entre essas classes?22
Esse aspecto modelar do relato mítico pode ser encontrado também nas narrativas homéricas, onde servem de exemplo de virtude, piedade, astúcia, justiça. Através do mito o homem adquire um paradigma para sua ação. Mircea Eliade nos informa que uma das funções do mito “consiste em revelar os modelos e fornecer assim uma significação ao mundo e à existência humana”23. Continuando com Eliade poderíamos dizer que o mito “narra como, graças às façanhas dos entes sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição”24. Entre os índios Xingu, por exemplo, encontramos um relato que procura explicitar a criação do mundo e das tribos pelo deus Mavutsinim. Nesse relato, encontramos a justificação para o uso de determinadas armas por cada tribo:
Foi Mavutsinim quem tudo criou; fez as primeiras panelas de barro e as primeiras armas: a borduna, o arco preto, o arco branco e a espingarda. Tomando quatro pedaços de tronco, resolveu criar as tribos Kamaiurá, Kuikuro, Waurá e Txucarramãe. Cada uma delas escolheu uma arma, ficando a tribo Waurá com as panelas de barro. Mavutsinim pediu aos Kamaiurás que tomassem a espingarda, mas eles preferiram o arco preto. Os Kuikuros ficaram com o arco branco e os Txucarramães preferiram a borduna. A espingarda sobrou para os brancos.
A população aumentou em demasia e Mavutsinim resolveu separar os grupos. Mandou que os Txucarramães fossem para bem longe, pois eram muito bravos. Os homens brancos foram para as cidades, bem distante das aldeias, pois tinham muitas doenças e com as armas de fogo viviam a ameaçar a vida de outros grupos. Dessa forma, as tribos puderam descansar em paz25.
Todo o sentido da existência, para o homem primitivo, pode ser encontrado nos relatos míticos; ela nada mais é que um fruto do desenrolar do processo mítico e, “assim como o homem moderno se considera constituído pela história, o homem das sociedades arcaicas se proclama o resultado de um certo número de eventos míticos”26. O mito instala-o num horizonte significativo e o homem primitivo passa a pertencer a um mundo pela magia do relato mítico.
Esse aspecto modelar do mito pode ser observado nas cerimônias ritualísticas, nas quais o homem primitivo repete o ato gerador que deu origem ao cosmo, à sua tribo ou a um costume. O ritual é uma recriação da ordem uma vez inaugurada por um ente sobrenatural. O gesto ritualístico funciona como um arquétipo à ação humana, permitindo que este reconquiste o mundo com aquele gesto primordial outrora realizado pelo ente sobrenatural ou pelo herói mítico. Através do rito, “ele conquista infatigavelmente o mundo, organiza-o, transforma a paisagem natural em meio cultural”27. É através desse gesto, realizado num tempo sagrado que o homem primitivo confere validade ao tempo profano; graças ao modelo revelado pelo mito, o homem se torna um criador, uma vez que o rito tem o poder de transformar o desconhecido – o caos – num cosmo, num habitat legitimado pela intermediação mítica.
A cerimônia ritualística, o reengendramento do gesto arquetípico por parte do ritual tem a capacidade de dotar o homem de um poder criador, permitindo que este se lance criativamente no mundo das coisas. O homem, a exemplo do herói mítico, torna-se capaz de colocar a natureza a seu serviço, ele é dotado da mesma magia cósmica presente no herói. O mito é um incitamento à ação, uma vez que doa ao homem a capacidade de lançar-se no mundo fenomenal. O rito traz a possibilidade de reviver o tempo sagrado no tempo profano; a cotidianidade é perpassada pelo sagrado. Todo ato cotidiano é precedido por um rito, evoca um tempo sagrado: o rito da caça, o rito da fecundidade da terra e da mulher, o rito da chuva e do sol. O mundo profano torna-se válido pela mediação ritual, que tem o poder de tornar novamente presente o ato gerador de tal ordem. É o tempo sacro, o tempo que tem a possibilidade de retomar os fundamentos de constituição do mundo, que inaugura o fluxo existencial. Passado, presente e futuro só o são em referência àquele ato primordial, doador de sentido ao mundo fenomenal e à existência humana como um todo.
Além de se colocar como paradigma de estruturação social e de ação, o mito expressa um paradigma para a subjetivação do homem primitivo. Ao instaurar um mundo humano, dotado de sentido, o mito cria uma gama de referências existenciais para o homem das sociedades arcaicas. O herói, o deus maldoso, são pontos referenciais na condução da vida humana como um todo. O mito tem o poder de lançar o homem numa comunidade de sentido, de onde ele parte para a sua construção como indivíduo singular. O horizonte mítico é o solo, e é nesse solo, e não em si mesmo, que ele encontra sua significação; é lá no tempo fabuloso, no herói mítico, que ele encontra o modelo de sua conduta e quais são os alcances e os limites de sua liberdade. Se buscarmos auxílio naquelas filosofias do mundo-da-vida, poderemos dizer que o mito tem por uma de suas funções justamente a inauguração desse mundo, de um horizonte comum de onde o homem retira os elementos necessários à sua autoestruturação. Há um diálogo entre o homem e aquela tradição que o contém, diálogo esse viabilizador da estruturação do homem em toda a sua plenitude. Um mundo o precede, o mundo inaugurado pelo mito, um mundo referencial, significativo, indicador de condutas éticas, de formas de relacionar-se e de códigos de conduta. Se assim foi feito no tempo fabuloso, se assim o herói mítico se comportou diante de tal situação, assim deve ser feito agora, uma vez que o tempo primordial é referência de ação. O homem estruturar-se-á como pertencente a essa tradição, como aquele que pratica tais ritos, que caça dessa ou daquela forma. A identidade do mundo é dada pelo mito, assim como a identidade do homem primitivo também é dada pelo poder criador do mito. O homem se lança, age, porta-se e apreende a realidade através da clareira aberta pelo relato mítico. É naquele ato primordial, por um fiat proferido num tempo fabuloso que o homem primitivo se reconhece como presença num mundo, um mundo dotado de sentido, um horizonte ameno e hospitaleiro criado pela magia e pelo poder do mythos.